Pode exercer-se a atividade docente sem recorrer a tecnologia? Arrisco, logo de
início, afirmar que não. Bem, se calhar pode, mas a quase totalidade dos
docentes utiliza tecnologia na sua ação educativa, sob variadas formas, desde “tempos
imemoriais”, pelo que arrisco assim afirmar que existe uma incontornável
dimensão tecnológica na atividade docente, um conjunto de meios de que os
docentes se foram apropriando, não por acaso, mas por que constituíram
instrumentos facilitadores das aprendizagens dos seus alunos.
Eu sou do tempo em que a atividade docente se
exercia em sala de aula tendo como suportes tecnológicos: o
quadro negro, o
pau de giz, o
apagador,
mapas e
modelos empalhados ou em madeira ou gesso, o
livro único e, muito de vez em quando, o
projetor de diapositivos ou o
episcópio e até, pasme-se, o
projetor de cinema. Depois, lá longe, ficava a
biblioteca que encerrava livros e enciclopédias e onde, acima de tudo, era
proibido falar ou mesmo sussurrar.
O quadro negro era o centro de todas as atenções
onde os docentes faziam aparecer circunferências primorosamente cortadas por
secantes, estigmas e gineceus, ângulos retos, triângulos rigorosamente
isósceles, espadas romanas, bacias hidrográficas, elmos etruscos,
loooooongas demonstrações de teoremas, raízes quadradas, declinações,
palavras estrangeiras, cordilheiras, rebatimentos e vulcões. As técnicas de
desenhar, esquematizar, esboçar, escrever no quadro negro a pau de giz,
tornaram-se incontornáveis para os docentes apesar do longo reportório de
alergias que causaram. E até havia giz de várias cores – um
arco-íris com que alguns docentes engalanavam as suas apresentações.
Dos quadros negros deste país foram, diariamente,
hora a hora, apagados verdadeiros portefólios, genuínas ilustrações,
autênticos posters que literalmente se esfumaram em poeira nos apagadores
que depois eram ritmicamente batidos na beira da janela, do lado de fora,
não deixando dúvidas a quem passava que aquele edifício era uma escola.
Os
mapas, mesmo queimados pelo tempo ou
rompidos num canto, mesmo mostrando o Congo no lugar onde já devia estar o
Zaire, mesmo fazendo das algas plantas quando já deveriam ser protistas,
tornaram-se incontornáveis para os docentes de Geografia ou de Ciências, por
exemplo.
Os
modelos em gesso eram deslumbrantes,
ornamentavam a parte de cima dos armários do laboratório de Ciências e
encimavam colunas de madeira na sala de Desenho. O da flor, por exemplo,
“demonstrava” em milissegundos o que o livro demorava duas páginas e meia a
descrever e o docente de Ciências mais ou menos dez minutos a explicar. Os
modelos em gesso, quando existiam na escola, tornaram-se incontornáveis para
os docentes de Ciências, de Desenho, de Geografia... O mesmo se pode dizer
dos modelos em madeira que em três dimensões desnudavam as moléculas e até o
átomo, sem esquecermos o sistema ortorrômbico ou o dodecaedro deltoide. Os
modelos de madeira, quando existiam na escola, tornaram-se incontornáveis
para os docentes de Matemática, de Ciências, de Física e Química, de
Desenho…
Quanto ao
livro único, como sabem, nunca
deixou de existir, se tivermos em conta que os livros escolares de hoje
tanto se assemelham entre si… Mas aqueles livros únicos é que eram mesmo
únicos, mesmo apropriados para uma escola que dizia “Normal” por cima da
porta de entrada. Nunca descobri onde ficariam outras escolas que, suponho,
não seriam normais. Mas o livro único, apesar de todos os defeitos que lhe
possamos apontar, foi uma tecnologia que se tornou incontornável para os
docentes, tanto que, ainda hoje, a sua adoção/aquisição continua a ser
mandatória para todos os alunos.
O
projetor de diapositivos era um luxo
próprio de dias de festa. Mas deslumbrava… empurrava-se um quadradinho por
uma ranhura de luz e na parede aparecia a Torre Eiffel toda, a Floresta
Amazónica, o Taj Mahal, a Mona Lisa ou a Invencível Armada feita em fanicos.
Os diapositivos eram guardados em pastas esquisitas e as coleções custavam
uma pequena fortuna que se permutavam, apenas a título de empréstimo, entre
escolas próximas. Apesar de matéria-prima rara e cara os diapositivos
tornaram-se incontornáveis para muitos docentes.
O
episcópio, convenhamos, queimava os
livros. Eram uma espécie de microondas onde, se nos esquecíamos do livro na
mesma página demasiado tempo a demora cheirava… e muitas vezes já não
chegávamos a tempo de evitar ficar com o Ciclo de Krebs crestado para
sempre. Era uma máquina de proporções desmesuradas para o efeito que
produzia, mas tinha o charme de uma lanterna mágica, a sua tetravó. O
episcópio tornou-se uma tecnologia incontornável para muitos docentes.
Ah e depois havia o
projetor de cinema… ali, à nossa
frente, no meio da sala de aula, sem segredos, uma máquina de crepitar
quilómetros de fita, que demolia a parede para deixar ver o mundo... a mexer... O
cinema teria sido uma tecnologia incontornável para muitos docentes se todas
as escolas tivessem máquina de projetar e já agora… fitas…
Apesar de ter sido criado em 1902 por
Roger Appledorn para a empresa
3M, o
retroprojetor chegou
às nossas escolas nos finais dos anos 70, início dos 80. O trabalho
investido de forma efémera nas representações desenhadas nos quadros negros
que se esfumavam ao longo dos anos em pó de giz podia agora perdurar e ser
partilhado entre os docentes... em finas camadas. Rapidamente esta tecnologia
se tornou incontornável para os docentes.
Para a produção de materiais a
máquina
de escrever, fosse HCESAR ou AZERT, sem grande margem para erros, levava os
docentes às arribas da escrita em letra de forma. Depois, impulsionadas
a álcool ou a óleo, as letras multiplicavam-se… tinha despontado o
controverso universo das policópias que requeria apenas um requisito – as
matrizes tinham que ser entregues na reprografia com dois dias de
antecedência. Rapidamente esta tecnologia se tornou incontornável para os
docentes.
A tecnologia vídeo associada à televisão foi a
conquista seguinte. Não demorou muito para que as escolas se organizassem e
fosse relativamente simples requisitar e ter disponível com frequência na
aula um equipamento misto para visionar documentos vídeo, filmes,
documentários… Daí à produção nesse suporte foi um passo… Rapidamente esta
tecnologia se tornou incontornável para os docentes.
Foi nos anos 90 que os
computadores chegaram
às escolas. Processar texto, efetuar cálculos, desenhos e apresentações,
tudo ficou mais facilitado. O teclado mudava, agora era QWERTY, e com ele
vinham teclas mágicas escritas em estrangeiro –
Delete,
Undo, Escape que
nos ensinaram que errar é tão humano como corrigir os erros que se cometem.
A pouco e pouco, a multifuncionalidade dos computadores iniciou um lento mas
contínuo movimento centrípeto que fez migrar para a sua esfera digital a
maioria dos meios tecnológicos existentes, até mesmo o quadro negro que se
tinha tornado verde, depois
branco e agora interativo. Com um início quase
imberbe, em que sempre que o computador acordava se tinha que lhe dizer,
através de disquetes flexíveis, quem ele era, como se chamava, o que era
capaz de fazer e que aparelhos tinha ligados a si, o computador ganhou
progressivamente um enorme potencial e múltiplas formas normalmente
referenciadas em língua estrangeira –
Desktop,
Laptop,
Palmtop,
Tablet,
Smartphone.
Rapidamente esta tecnologia se tornou incontornável para os docentes apesar
de todos os constrangimentos crónicos e limitações. Sobre esses só esforços
continuados e bem direcionados podem evitar a queda inevitável para as
profundezas da desatualização.
A tecnologia que, até aos anos 90, tinha
chegado à escola e à atividade docente gradualmente, aumentava agora o ritmo... e o melhor ainda estava para vir…
Com o despontar da
Internet, com a
WWW – World Wide
Web, a rede em redor de todo o mundo, a realidade ultrapassou literalmente a
ficção e as previsões mais visionárias. Em 1945,
Vannevar Bush, no artigo
As We May Think,
idealizava uma máquina, que designou por
Memex, capaz de
armazenar todo o conhecimento existente que seria depois acedível por meios
eletrónicos, auxiliando assim as fragilidades da memória humana. A
Internet,
desde que deixou de ser apenas uma rede de informação militar, caminha para
ser essa “máquina” global da humanidade que nunca estará terminada e que
constitui hoje uma ferramenta fulcral de apoio às aprendizagens.
Pierre Lévy, no seu livro
As Tecnologias da Inteligência
– O Futuro do Pensamento
na Era Informática, refere: No mundo das telecomunicações e da informática, elaboram-se novas
formas de pensar e de conviver. As relações entre os homens, o trabalho, a
própria inteligência dependem, efectivamente, da metamorfose incessante de
dispositivos informáticos de toda a ordem.
Na entrada deste novo século os desafios
tecnológicos que se colocam à atividade docente são, convenhamos, mais exigentes
do que foram os anteriores, mas, em contrapartida,
possuem inexoravelmente maior potencial pedagógico, passando a ser incontornável para os docentes:
Gerir pastas e ficheiros digitais
Converter ficheiros
Compactar e descompactar pastas e
ficheiros
Editar texto, imagens, sons
Produzir cálculos
Criar gráficos a partir de cálculos
Criar apresentações
Gerir correio eletrónico
Pesquisar e organizar informação
Utilizar plataformas digitais
Dinamizar espaços educativos em
plataformas digitais
Utilizar e explorar aplicações para
dispositivos móveis
Selecionar, criar e modificar
recursos educativos digitais
Utilizar e explorar ferramentas
digitais de trabalho colaborativo
Comunicar através de serviços de
audio e videoconferência
Dinamizar espaços educativos
dedicados em redes sociais
Dominar ferramentas de ensino a
distância
Gamificar situações de aprendizagem
Participar em comunidades de prática
Desde o seu início, em 1993, os CFAE
acompanham os docentes na conquista e reconquista da eficiência tecnológica
na atividade docente oferecendo, gradualmente, oportunidades de formação no
domínio das novas tecnologias de informação e comunicação. A grande maioria
dos docentes soube ganhar essas oportunidades e competências.
Muito proximamente, mais e novos
desafios se avizinham sob a designação
Plano de Ação para a
Transição Digital, mais especificamente,
Digitalização das Escolas e
Capacitação Digital dos
Docentes. Esta capacitação tem como linhas mestras o
DigCompEdu – Quadro
Europeu de Competência Digital para Educadores,
quadro para o desenvolvimento
da competência digital dos educadores na Europa que pretende ajudar os estados
membros a promover a competência digital dos seus cidadãos e impulsionar a
inovação na educação.
Voltaremos a esses desafios em próximos números da OZARFAXINARS. O CFAE_Matosinhos
estará, como sempre, ao lado dos docentes de Matosinhos nesta nova demanda.
Para terminar, destacamos
do DigCompEdu:
Os
educadores são exemplos para a próxima geração.
Por isso, é vital que
estejam equipados com a competência digital
que todos os cidadãos necessitam
para participar ativamente numa sociedade digital.
Como cidadãos, os
educadores precisam de estar equipados com essas competências
para
participar na sociedade, quer a nível pessoal quer profissional.
Como
exemplos, precisam de ser capazes de demonstrar a sua competência digital
perante os aprendentes e legar o uso criativo e crítico que fazem das
tecnologias digitais.
Enquanto exemplos, eles são, em primeiro lugar,
facilitadores de aprendizagem ou simplesmente: educadores.
Enquanto
profissionais dedicados ao ensino,
necessitam, além das competências
digitais gerais para a vida e o trabalho,
de competências digitais
específicas ao educador
para serem efetivamente capazes de utilizar
tecnologias digitais para o ensino.
Lévy, P. (1990)
As Tecnologias da Inteligência –
O Futuro do Pensamento na Era Informática. Ed. Instituto Piaget, Lisboa
Lucas, M., Moreira, A. (2018). DigCompEdu – Quadro
Europeu de Competência Digital para Educadores. Ed. Universidade de Aveiro,
Aveiro