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Ozarfaxinars

e-revista  ISSN 1645-9180

Direção: Jorge Lima   Edição e Coordenação: Fátima Pais

 

[Outros números publicados]

 

 

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Março 2022

 

Gestão de conflitos na Escola

  

  

  

Ana Isabel Lage Ferreira é, desde há vários anos, formadora do CFAE_Matosinhos para a área temática da Psicologia Educacional . Da sua recente publicação, o livro Gestão de Conflitos em Sala de Aula: ideias para pôr em prática, que produziu em coautoria com Irene Simões e Flora Castanheira, traz-nos um excerto que dá corpo a este número da OZARFAXINARS.

 

  

  

Qualquer um pode zangar-se

- isso é fácil.

Mas zangar-se com a pessoa certa,

na medida certa,

na hora certa,

pelo motivo certo

e da maneira certa

- não é fácil.

Aristóteles

 

Quando duas ou mais pessoas interagem entre si e percebem diferenças incompatíveis, ou ameaças aos seus recursos, necessidades ou valores e quando essas pessoas respondem em função do que foi percebido, então estão criadas as condições ideais para um conflito.

A intensidade, a duração ou a gravidade desse conflito pode depois aumentar ou diminuir, em função das estratégias usadas por uma ou ambas as partes para o resolver.

Ainda que seja (virtualmente) impossível erradicar por completo e para sempre os conflitos da sala de aula, é fundamental, quase urgente, diminuir rapidamente a intensidade, a duração e a gravidade dessas situações.

Porquê?

Porque consideramos essencial para que o professor possa aproveitar ao máximo o tempo de ensino-aprendizagem, e também para que mantenha a sua sanidade mental e, já agora, a dos alunos também. E também porque precisamos dessa sanidade mental para trabalhar e aprender melhor. (... ) é possível construir um ambiente de sala de aula mais positivo com incidentes menos intensos, mais curtos e menos graves.

Afirmamos isto com base na investigação realizada, sobretudo nas últimas duas décadas, nos resultados da implementação de programas de desenvolvimento de competências sócio emocionais e na nossa própria experiência. (...)

   

O que acontece quando acontece um conflito.

 

Usemos como exemplo um cenário na fila da cantina, que é um clássico!

 

(A Luísa passa à frente da Vera)

Vera: Ei! Não podes passar à frente!

Luísa: Não estou a passar. Só estou a conversar com a Xana.

Vera: É, está-se mesmo a ver que é isso que vai acontecer. Já ontem fizeste o mesmo!

Luísa: E qual é o teu problema!??

Vera: O meu problema és tu que estás a meter-te à minha frente!

Luísa: Ai coitadinha!!!

Xana: Não ligues! Ela é mesmo bebé!!

Vera: Já vais ver quem é bebé!! (bate na Xana e empurra a Luísa)

 

Este cenário é-lhe familiar?

Pode não ter sido na fila da cantina, mas pode ter sido no corredor (quem empurrou quem), ou na sala de aula (quem pôs primeiro o dedo no ar), ou no ginásio (a bola foi fora ou dentro). Arriscámos a dizer que são estas as situações de conflito mais frequentes em qualquer escola.

 

O que há de comum a todas elas?

Em qualquer situação de conflito é grande a probabilidade que os alunos envolvidos sintam emoções negativas como a raiva, a humilhação ou a frustração. E nessas situações, mais ou menos comuns e de forma mais ou menos previsível, a espiral dessas emoções negativas pode evoluir de forma muito rápida e intrincada.

Para compreender melhor a dinâmica do conflito, temos por isso que conhecer mais sobre as emoções e sobre o papel que desempenham nesses cenários.

A Raiva (emoção) e a agressão (comportamento) são, a maior parte das vezes, as protagonistas. Por isso, perceber melhor como funciona a Raiva - os seus mecanismos e evolução – parece-nos essencial para podermos atuar de forma mais eficaz numa situação de conflito.

 

Porquê falar sobre a Raiva?

     

       

A Raiva é uma das emoções incluídas no grupo das emoções básicas, juntamente com o Medo, a Alegria, o Nojo, a Tristeza e a Surpresa.

Um dos argumentos mais utilizados para esta inclusão é o cumprimento de funções consideradas adaptativas e que justificam a sobrevivência do indivíduo ao longo do seu processo de evolução.

Mais especificamente, a Raiva cumpre as seguintes funções:

 

a. Organiza e regula os processos fisiológicos e psicológicos de autodefesa;

b. Regula as interações sociais;

c. Ajuda a ultrapassar obstáculos na prossecução de objetivos.

 

À semelhança de outras emoções, o valor adaptativo da Raiva dependerá sobretudo do:

  

- Grau de ajustamento da avaliação da situação que a originou.

Por exemplo, a diferença entre sentir raiva porque alguém me partiu um lápis e me pareceu que foi sem querer ou foi de propósito;

 

- Comportamento que dali resultou.

Por exemplo, a diferença entre partir todos os lápis do outro ou pedir-lhe que tenha mais cuidado da próxima vez.

 

- Impacto na relação com o outro.

Por exemplo, a diferença entre o outro nunca mais falar comigo ou continuar a ser meu amigo.

 

A Raiva é considerada uma emoção negativa quer pela experiência subjetiva quer pela avaliação social.

Por um lado, as reações corporais (calor, tremuras, tensão muscular), as alterações fisiológicas (libertação de adrenalina, aumento do ritmo cardíaco e respiratório) e os pensamentos (“ele nem sabe o que lhe vai acontecer!”) provocam um mal-estar generalizado. Por outro lado, em quase todos os contextos é atribuído um valor muito negativo à expressão livre da raiva. É comum associar essa expressão a descontrolo ou a características negativas, como falta de carácter ou de má-educação.

 

Retomando o exemplo da cantina, do ponto vista teórico, são possíveis quatro cenários geradores de Raiva.

 

1. Encontrar um obstáculo na prossecução do meu objetivo

- Quero despachar-me a almoçar e quando chego à cantina a fila está enorme.

 

2. Responsabilizar alguém por algo de mau que me aconteceu

- Quero passar à frente na fila e o responsável pela cantina obriga-me a ir para trás da fila.

 

3. Considerar injusto algo que me aconteceu e achar que não o mereço

- Os colegas da minha turma conseguiram passar à frente na fila e só eu fui lá para trás.

 

4. Sentir que a minha autoestima foi ameaçada

- Os meus colegas começaram a gozar comigo por eu ter ido lá para trás.

 

Ainda que lhe seja reconhecida uma função adaptativa, a expressão da Raiva tem muitas vezes um impacto negativo na qualidade das relações interpessoais.

Este pode ser considerado o principal motivo porque, tal como já dizia Aristóteles, é importante que qualquer pessoa aprenda a zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e da maneira certa.

 

Como aprendemos a expressar a Raiva

    

 

Antes da aquisição da linguagem, o bebé mostra que está zangado (chorando ou fazendo birra)

quando um objetivo pretendido não foi alcançado, por exemplo, quando não consegue ter um brinquedo.

Esta é aliás uma forma que se revela muito eficaz para reclamar a atenção imediata de um adulto.

 

A aquisição da linguagem é um momento muito importante no desenvolvimento de formas mais adequadas da expressão das emoções.

Por um lado, as crianças adquirem um recurso que lhes permite uma expressão mais clara,

e por outro, os adultos podem usar estratégias mais sofisticadas para ensinar a sua regulação.

Nesta fase do desenvolvimento são os pais os principais responsáveis pela modelagem da expressão de emoções negativas,

sobretudo da Raiva, e fazem-no para que os seus filhos melhor se adaptem socialmente.

 

Com a entrada para a escola, a interação com os pares passa a ser a principal referência para a regulação da expressão de emoções.

De acordo com a investigação, nesta fase acontecem dois marcos muito importantes no desenvolvimento que podem influenciar a capacidade (presente e futura) de expressar emoções negativas de forma construtiva e socialmente competente: a autorregulação e a identificação das emoções no outro.

A entrada para a escola é a altura em que as crianças conseguem “ler” melhor as emoções nos outros, mas é também nesta fase que “aprendem” a suprimir a expressão ou a disfarçar o que sentem, sobretudo as emoções negativas.

Isto acontece porque percebem nisso mais benefícios que desvantagens e progressivamente vão também deixando de aprender formas mais adequadas de as expressar, uma vez que não as expressam de todo.

   

A expressão aberta da Raiva é aquela que mais se altera ao longo do desenvolvimento e que progressivamente se torna mais socialmente adaptada.

No entanto, em idade escolar, o comportamento mais frequente na expressão da Raiva é a agressão.

 

 

Esses comportamentos incluem a agressão verbal (ex.: insultar, gozar, humilhar) ou física (ex.: empurrões, pontapés).

Pode ser direta, ou seja, qualquer comportamento dirigido diretamente ao outro; ou indireta, quando, por exemplo, há destruição de material ou difamação.

 

Porque é que os alunos reagem de forma por vezes tão exagerada a situações que são por vezes tão simples como furar a fila da cantina?

Mas porque é que não aceitam que não podem “furar” uma fila?

Que há outros à frente que chegaram primeiro?

Como é que não percebem que é preciso respeitar uma ordem?

   

Contributos para a Gestão de conflitos na Escola

         

  

  Explicar o/s motivo/s porque têm que respeitar a ordem, ou aceitar injustiças, é muito importante e deve acontecer. (...)

Importa desenvolver estratégias que podem ajudar os alunos a expressar de forma mais positiva essas emoções negativas.

Depois de adquirida, essa competência será válida para a fila da cantina, a fila da Segurança Social ou a fila do trânsito.

 

Perceber as emoções em si e nos outros não é fácil e uma leitura enviesada de uma situação pode resultar numa reação desadequada a uma situação difícil.

Mais ainda, alguns estudos mostram que alunos com mais tendências para reagir agressivamente, são também aqueles que atribuem mais facilmente uma intenção negativa aos outros e que, por isso, tendem a expressar a sua raiva de forma agressiva.

E com isto percebemos como o ciclo se pode repetir até entrar na tal espiral rápida e intrincada que a nós, educadores, nos pode parecer difícil (ou quase impossível) de interromper.

 

Para além disso, na investigação encontramos mais evidências que ajudam a explicar essa espiral.

Numa situação de forte intensidade emocional negativa é mais difícil a autorregulação.

Isto acontece porque a prioridade passa a ser restabelecer o bem-estar emocional, mesmo que à custa de comportamentos que, sabemos de antemão, terão consequências negativas. Gritar ou magoar alguém pode ser um desses comportamentos que são usados como forma de recuperar o bem-estar, ainda que ao fazê-lo vá afastar os outros ou acabe por ter uma participação disciplinar.

 

Alguns estados emocionais negativos levam as pessoas a ignorar informação relevante. Esta situação pode ser explicada pela diminuição da atenção a todos os detalhes de uma situação e pela propensão para entrar no registo de “não tenho nada a perder”.

Numa situação de elevada tensão emocional pode ser comum não ouvir tudo, ou interpretar de forma enviesada o que o outro disse.

Muitas vezes, o empurrão até foi sem querer, mas já agora e como não há nada a perder, então o empurrão passa a ser a sério.

 

Emoções negativas (como a Raiva) podem entorpecer a autoconsciência.

A fuga a uma sensação de mal-estar pode significar a fuga de si próprio.

Ao perder a consciência de si será sempre mais difícil regular o seu comportamento usando as estratégias que até o próprio considera que não são adequadas.

Por isso usamos expressões como “estava fora de si” ou “nem te reconheci”.

Quando há uma forte tensão emocional, a reação pode, por esse motivo, ser muito desviante.

Quando a tensão emocional negativa está instalada será sempre mais difícil gerir qualquer situação de conflito.

Será por isso fundamental atuar o mais a montante possível, ou seja, antes que surja essa tensão, criando um clima positivo na sala de aula.

      

  

       

[Versão pdf deste número]

 

Nota - Ilustrações de domínio público disponibilizadas por Pxhere e Pexels

   

 Agradecemos, desde já, a sua opinião sobre este número - ozarfaxinars@gmail.com

 

 

 

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